O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - consagra a proteção integral dos direitos da criança e do adolescente, como sujeitos de direito com proteção e garantias específicas, dentre as quais respeito, dignidade, convivência familiar e comunitária. Num mundo civilizado, o documento seria suficiente para regular relações individuais, mas, em países como o Brasil, em virtude do próprio contexto histórico, a populaçāo nāo perde tāo rapidamente a essência primitiva de suas condutas.
Um desentendimento dentro do voo da companhia aérea Gol, que partiu do Rio de Janeiro, com destino a Belo Horizonte, em 4 de dezembro de 2024, agitou as redes sociais. Em vídeo gravado por passageira, uma das partes envolvidas aparece sendo constrangida publicamente. E, diga-se de passagem, pelo fato de não ceder o assento à janela a uma criança que queria viajar naquela poltrona. O mal-entendido colocou em dúvida o comportamento de pais, que estabelecem poucos limites ou regras para os filhos, e de pessoas que não abrem mão de seus direitos para atender a um “dever social“.
De acordo com agentes de viagens que se pronunciaram sobre o assunto, a escolha do assento é um direito do passageiro que, ao adquirir um bilhete aéreo, tem a opção de escolher o lugar que deseja ocupar, desde que esteja disponível no momento da compra ou no check-in. No entanto, essa escolha pode ser alterada em algumas situações – nenhuma delas se aplica ao caso. Por outro lado, passageiros entendem que a companhia deve ter postura profissional para resolver conflitos e acalmar ânimos, oferecendo uma viagem agradável. Mas, pelo que se viu, a companhia nāo se envolveu.
O caso - Aline, mãe de Arthur, com 4 anos recém-completados, veio a público contar sua versão sobre o episódio, depois de assistir à exposição negativa da sua imagem e de sua família. Segundo o relato, ela estaria na parte da frente da aeronave resolvendo o caso do filho mais velho, portador de necessidades especiais, que, por lei, deveria sentar em outro lugar. Enquanto isso, Arthur sentou-se numa poltrona, à janela, para ficar ao lado da avó. Assim que a dona do assento chegou e ele teve que ceder o lugar, Aline retirou o filho, que começou a fazer pirraça. Ocupando-se em controlar o estado emocional da criança, nāo percebeu que a situacāo tomava maior dimensão.
O assento pertencia a Jeniffer Castro, cuja atitude de não cedê-lo à criança teria indignado outras pessoas. Uma delas, com a câmera de um Smartphone em ação, intimidou Jennifer, de forma vexatória, que manteve reação tranquila diante do episódio. A autora do vídeo enviou a gravação para a filha, de 24 anos, que o divulgou no “Shorts“ (vídeos curtos do Tik-Tok). As imagens viralizaram em poucas horas, com o público solidarizando-se com Jennifer, em vez de censurá-la.
Revés – A princípio, a mãe da criança foi apontada como irresponsável e negligente por nāo ensiná-la a lidar com a frustraçāo. Depois, comentou-se que ela teria gravado o momento, mas que sua filha é quem teria compartilhado - o que desfavoreceu ainda mais a sua imagem. Aline negou a narrativa, trazendo à tona, num portal de notícias, que nāo gravou nem compartilhou o momento, tampouco sua filha, de 11 anos, a qual aparece no vídeo cabisbaixa, sentada ao lado de Jeniffer, e que depois da repercussāo do caso estaria até com vergonha de ir para a escola.
A pessoa que constrangeu Jeniffer foi identificada como uma advogada de Belo Horizonte. Ela teria tido compaixão da criança. Todavia, ao vir a público expor sua versāo, sentiu pressāo popular para que fosse judicialmente processada e admitiu erro. A filha que recebeu o vídeo disse que teria tentado esconder o rosto de Jennifer, antes de compartilhar a gravação, mas que o efeito não deu certo. Como o vídeo gerou reação diferente da esperada, foi retirado do ar e o perfil apagado. Jennifer, por sua vez, acabou ganhando com o caso, pois ampliou consideravelmente sua rede de seguidores nas redes sociais, e passou a receber convite para publicidade.
Eu gostaria de destacar uma peculiaridade do nosso povo, já descrito como “de grandes diferenças, quando comparado aos demais“. Pesquisa divulgada pela Veja Saúde mostrou que o “estado emocional dos brasileiros está entre os piores do mundo” e é fato que esse perfil de comportamento gera impacto em nosso desenvolvimento social e econômico. Devido ao bombardeio de informações e à suscetibilidade a influências externas, o discernimento seria antídoto precioso contra a eloquência, mas falta à população habilidade de enxergar além do momento presente.
Outra análise sobre perfis comportamentais no Brasil, feita pela Sólides, revelou: “A maioria dos brasileiros são comunicadores natos. As características desse perfil são realmente predominantes no nosso país. O mais interessante é que a extroversão, o poder de persuasão e o carisma agora são mais do que apenas estereótipos. (...) Depois do 'Comunicador', o perfil mais presente na população brasileira é o 'Executor'. Cerca de 25,6% da população brasileira tem esse perfil como predominante. Logo depois vem o 'Planejador', com 21,5% e, por último, o 'Analista' ". (SÓLIDES BLOG).
Darci Ribeiro (1922-1997), antropólogo e escritor, já explicara a tendência no livro As Américas e a Civilização, definindo os “Povos-Novos como povos que se constituíram pela confluência de contingentes profundamente díspares em suas características raciais, culturais e linguísticas, como um subproduto de projetos coloniais europeus“. Na visão de Darcy, “a reunião de negros, brancos e índios acabou por formar povos profundamente diferenciados de si mesmos e de todas as outras matrizes formadoras“. Concluindo: o brasileiro seria incomparável.
O que se valida – Em meio à projeção tomada pelo caso, o que mais se observou foram cobranças aos adultos para que viessem a público justificar atitudes e se desculpar. Sobre o valor dessa experiência para a criança, não houve destaque. Embora, ao que tudo indica, Arthur tenha se comportado dentro dos padrões de normalidade para a sua idade, ele sai de cena como “birrento”, mas expondo involuntariamente a anomalia de uma sociedade.
Uma criança precisa aprender a lidar com seus sentimentos e emoções, desenvolver a linguagem, socializar-se, entender e adquirir valores e normas da vida em comum. Essa oportunidade deveria ser destacada por oferecer a ela estímulos, permitir que absorva impressões do seu ambiente, vivencie, teste limites, recebendo cuidado e atenção. Desconsiderar a importância de se viver cada fase da vida leva a sérias consequências.
No ocorrido, várias incongruências podem ser observadas: a companhia aérea não seleciona automaticamente assento preferencial para pessoa com deficiência – quem a acompanha precisa reclamar o direito; uma pessoa graduada em Direito viola a privacidade, ferindo honra alheia; uma mãe tensa atua dentro de suas possibilidades e vira alvo de execração pública; por fim, quem é verbalmente agredida opta pelo silêncio e seu comportamento causa estardalhaço.
Esse caso poderia render muitos debates sobre tolerância, resiliência, empatia, cidadania, manipulação de informação etc. Entretanto, depois de se assistir a mais uma inversão da relevância dos aspectos, na qual a contraversão vira festival de postagem e pauta de noticiários nacionais, melhor mesmo é encerrar os comentários. A proposta aqui não é fazer julgamento, e sim analisar a situação, com neutralidade. Assim, acredito, podemos nos conhecer melhor, identificar características que nos deixam em situação de desvantagem em relação a outras nações e trabalhar no sentido de superá-las ou usá-las a nosso favor. Além de que, durante o processo, adquirimos competência para orientar as novas gerações.
Referência:
FANTÁSTICO ENTREVISTA MULHER QUE FILMOU JENNIFER CASTRO DENTRO DO AVIÃO E CHORA. Canal Deu Tret4, 09.12.2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=h746KR6it9s. Acesso em: 18.dez.2024.
DISPUTA PELA JANELA DO AVIÃO: MÃE ADMITE EXAGERO DO FILHO E RECONHECE ‘DIREITO DO ASSENTO‘ DE PASSAGEIRA; ENTENDA. O Globo, Rio de Janeiro, 07.12.2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/12/06/disputa-pela-janela-do-aviao-mae-admite-exagero-do-filho-e-reconhece-direito-do-assento-de-passageira-entenda.ghtml. Acesso em: 07.dez. 2024.
MARTINS, Carlos: Mãe de criança que fez birra em voo da GOL por assento na janela se pronuncia. AEROIN.NET, 06.12.2024. Disponível em: https://aeroin.net/mae-de-crianca-que-fez-birra-em-voo-da-gol-por-assento-na-janela-se-pronuncia. Acesso em: 07.dez.2024.
BEANI, Larissa: Estado emocional dos brasileiros está entre os piores do mundo. Veja SAÚDE, 19.04.2024. Disponível em: https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/estado-emocional-dos-brasileiros-esta-entre-os-piores-do-mundo. Acesso em: 10.dez.2024.
SIQUEIRA, Sabrina: Pesquisa: os perfis comportamentais no Brasil. SÓLIDES BLOG, 11.12.2024. Disponível em: https://solides.com.br/blog/pesquisa-os-perfis-comportamentais-no-brasil/. Acesso em: 12.dez.2024.
GIAROLA, Flávio Raimundo: O povo novo brasileiro: mestiçagem e identidade no pensamento de Darcy Ribeiro. UDESC, Revista Tempo e Argumento, 2012. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/3381/338130378009/html/. Acesso em: 12.12.2024.
Mulher que gravou passageira em avião foi candidata e denunciada pelo MPE. Metrópoles SHORTS, 07.12.2024. Disponível em: https://www.youtube.com/shorts/FrYbKkGgLQI. Acesso em: 12.12.2024.
DI ANGELLIS, Gilbert. Por que é tão difícil advogar no Brasil? Portal Jurídico Viver Direito, 25.11.2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GNJYz1mr8QI. Acesso em: 12.12.2024.
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