O comportamento democrático deveria ser aprendido para que os direitos individuais na sociedade fossem protegidos, pleiteava já há quase dois séculos Janusz Korczak (1878-1942), médico, psicólogo e escritor polonês. Ele foi um defensor da valorização, da participação e dos direitos das crianças. Os princípios da democracia poderiam ser aplicados tanto a crianças quanto a adultos, considerava Korczak. Procurou levar crianças a viver esses princípios no cotidiano dos orfanatos que dirigiu em Varsóvia, sob a forma de “autogestão dos educandos“.
Henryk Goldszmit, seu nome de nascimento, era filho de uma família rica e próspera. Desde cedo, não fazia distinção de classes, e conta-se inclusive que escapulia para brincar com crianças que tiveram menos possibilidades financeiras. Ao que tudo indica, a impressão que tinha do mundo e suas experiências de vida o marcaram sensivelmente, ajudando-o a superar a fase difícil que enfrentou após a morte do pai, quando sua família precisou de muito esforço para sobreviver. Henryk começou a escrever textos quando estudante e teria escolhido o pseudônimo de Janusz Korczak, para participar de um concurso. O texto foi transformado em sua primeira publicação e ele manteve o pseudônimo para o resto da vida.
A história nos mostra que Korczak não foi o primeiro, nem o único médico do seu tempo a se deslocar do campo da medicina para o da educação. Essa “transição“ pode ter resultado de uma demanda, por ele percebida, do “redimensionamento“ dos conceitos pedagógicos, sob a responsabilidade da sociedade - na ausência da família - e possivelmente também por uma sensação de “insuficiência“ profissional para restabelecer a saúde das pessoas diante dos problemas sociais que as vitimavam, ou quem sabe ainda por motivação política ou qualquer outra razão desconhecida.
Sua biografia revela traços de um grande crítico da escola tradicional - julgava os conteúdos monótonos, contestava procedimentos que não levavam em conta a realidade do aluno, e se insurgia contra medidas arbitrárias. Como educador, não considerava a família tradicional o vínculo mais importante e fundamental dos laços sociais. Considerando sua “clientela“ - crianças de diferentes contextos sociais - e a proposta de respeitar a diversidade, vislumbrando um ambiente em que todos se sentissem em condições de igualdade e de justiça (ou, como conceituamos hoje, caminhando no sentido da equidade), a sociedade estava diante de uma abordagem inovadora.
Outros nomes de sua época fizeram essa “transição“. Maria Montessori (1870-1952), médica e pedagoga italiana, por exemplo, impedida de exercer a medicina após sua formatura, pelo fato de ser mulher, iniciou um trabalho para crianças com necessidades especiais, na clínica da universidade, vindo posteriormente a dedicar-se a crianças sem qualquer comprometimento. O médico belga Ovide Decroly (1871-1932), desde o início voltou sua atenção para as crianças com deficiência mental. Foi o criador da "pedotecnia", disciplina voltada ao estudo de atividades pedagógicas coordenadas ao conhecimento da evolução física e mental das crianças. Tornou-se famoso por fundar a École de l’Ermitage, em Bruxelas, para alunos considerados normais, mas não sistematizou seu método por escrito, por julgá-lo em construção permanente. Destaco também Emmi Pickler (1902 - 1984), que nasceu na Áustria e viveu longos anos em Budapeste, na Hungria, onde desenvolveu uma metodologia fundamentada na atenção plena e afetuosa para com a criança, que colocou em prática no orfanato que dirigia.
(Abro aqui parênteses para lembrar ainda de Rudolf Steiner (1861-1925), fundador da Pedagogia Waldorf, que curiosamente fez o caminho contrário, partindo da filosofia para a medicina. Sobre ele, falarei num próximo artigo).
Criança, um ser historicamente sem voz
Esses visionários formularam postulados a partir do trabalho de Pestalozzi e de Fröbel, pioneiros da educação infantil, de quem certamente foram observadores e críticos. A propósito, a origem etimológica da palavra infância vem do latim infantia, do verbo “fari“, falar - especificamente, de seu particípio presente “fan“, falante - e de sua negação “in“, que resultou em “sem fala“, ser que não é falante. Verificada essa condição de origem, a criança é alguém sem direito a voz. Ela cresce muitas vezes alijada do processo decisório, e não obtém espírito crítico para fazer seleção de uma opção entre outras, o que implica o desenvolvimento do senso de responsabilidades.
Cada cultura tem a sua imagem da criança, pois cada uma “constrói os modelos que precisa para se desenvolver e, por sua vez, se orienta por eles; é um processo dinâmico, em permanente transformação“, salienta a psicóloga clínica Adriana Kortlandt em seu artigo A construção da imagem da criança. (OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, 2012). Analisando situações na visão de nossos antepassados, ela comenta: “esperar que um ser humano de dez anos se comportasse como um adulto, não somente era comum, como normal. A criança era vista como um adulto em miniatura, privado de razão, palavras, discernimento e, por isso, merecedora de desconfiança, principalmente sempre que se expressasse de forma espontânea“.
Efetivamente, a imagem da criança está ligada ao conceito de maioridade, que é diferente em vários países, pois cada sociedade tem um entendimento sobre quando o cérebro atingiria determinado amadurecimento. A criança da qual falamos hoje tem fases de desenvolvimento praticamente demarcadas. Seus direitos e proteção especial ganharam até uma normativa internacional. No Brasil, considera-se criança a pessoa de até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. No Direito alemão, criança é quem ainda não completou 14 anos de idade e adolescente é o que tem entre 14 e ainda não completou 18 anos de idade. No parlamento alemão, discute-se, no momento, o direito de maiores de 16 anos irem às urnas para escolher os seus representantes. No Brasil, esse direito já é concedido desde 1988.
A despeito das diferenças culturais, o que preocupa os pais é o posicionamento que os jovens adotam sobre política e sobre ativistas políticos, considerando que são por eles bastante influenciados. De fato, nem todos alcançam a maturidade necessária para uma escolha tão importante aos 16 anos, e muitas vezes nem mesmo após terem conquistado a maioridade. Mas é exatamente quando se tematiza a democracia e se questiona o que os jovens por ela entendem, que ressurge o ideal de Janusz Korczak. Para o “Velho Doutor“, como Korczak também era conhecido, a resposta reside nas experiências que esses jovens teriam tido com a gestão democrática e o grau em que eles teriam participado das decisões de sua coletividade.
Participação requer tolerância, aceitação, paciência, criatividade, coragem. É um exercício permanente de convívio com a diversidade, com a pluralidade de opiniões, de interesses e necessidades, que deveria comecar logo na infância. Além disso, os pais podem sensibilizar os filhos para a questão da acessibilidade, posto que, num corpo social, quando UM é excluido, o efeito é sentido pelo coletivo. Muito já se avançou na elaboração de leis, mas, para que essas saiam do papel, garantindo o direito de todos, é preciso que se avance intimamente do comportamento instintivo, baseado em um “gatilho“, para o comportamento “aprendido“, fruto da vivência, digamos, no qual os atributos do ser humano, por meio da sua interação com o seu meio, são aperfeiçoados.
Dicas para fomentar a independência e o senso de responsabilidade da criança no âmbito familiar e de seu grupo:
Vestuário
Vivemos ainda sob a mentalidade de que bebês não estariam prontos para fazer qualquer escolha. Quando, então, estariam prontos, se há adultos que não se sentem aptos ou reconhecem ter feito escolhas erradas? Se você tem o costume de decidir que roupa sua criança irá vestir, transfira a decisão para ela. Dê-lhe duas ou três alternativas, considerando a ocasião, a temperatura ambiente e a preferência dela. Estudos já demonstraram que, nessa fase, mais de três opções sobrecarregam o funcionamento da atividade cerebral. "Na verdade, geralmente é uma série de pequenas escolhas, que cumulativamente nos coloca num curso de vida“, ressalta Edgard Oliveira (MEDIUM.COM). Além do mais, sendo a criança quem irá vestir, tem ela todo o direito de optar pelo que mais lhe agrada.
Expor opinião
Crianças estão sempre de ouvidos atentos a tudo o que acontece ao redor. Fazem, paralelamente, comentários espontâneos e, em curto espaço de tempo, reproduzem o teor de uma conversa. Volta e meia são constrangidas por adultos que, tentando silenciá-las, logo disparam: “Isso não é assunto de criança!“. Deveriam, então, tratar esses assuntos de forma reservada. Os poucos anos de idade não impedem que crianças queiram saber o que se passa no mundo e, graças à sua sensibilidade inata, elas têm uma compreensão especial sobre as coisas. Adolescentes, da mesma forma, quando não motivados a se manifestar ou quando têm opiniões ignoradas ou criticadas no círculo familiar, buscam em seu grupo uma forma de obter ressonância. Por serem mais velhos, muitos pais avaliam saber mais e sobre todos os assuntos – ledo engano! Outros não sabem lidar ou não se sentem à vontade para conversar sobre questões. Nesse caso, é aconselhável que iniciem examinando com a criança um assunto adequado à idade dela. Encoraje-a a se posicionar, porque a liberdade de expressão, que tanto se defende, deve começar em casa. Eduque-a para debater com serenidade, sem aumentar o tom de voz, e, sendo contestada, a melhorar sua capacidade de argumentar, apresentando dados, exemplos, respeitando o interlocutor. Quando o tema em sua cultura for tabu, explique-lhe a razão e possíveis consequências para quem ousa quebrá-lo.
Passeios Se deseja fazer um passeio com sua criança e ela já entende o que passear significa, apresente-lhe duas ou três opções de destino. Se você já decidiu sozinho aonde ir, então busque uma forma sutil de “colocá-la no barco“. Fotos do local, comentários sobre as coisas de que poderá desfrutar, ajudam-na a “visualizar“ a oportunidade. Deixe as regras claras antes de sair de casa. Isso poupa discussões e dissabores no caminho. Esteja “aberto“ e dedique tempo para uma conversa a respeito ou prepare-se para um retorno antecipado, caso as regras sejam quebradas. Lembre-se de que, mais do que o investimento no passeio, estão em jogo limites que ambas as partes (você e ela) não deveriam ultrapassar.
Respeito às regras Falando em regras, essas devem ser bem fundamentadas. Não importa se escritas ou ilustradas em cartazes, o essencial é que os envolvidos estejam em concordância. De quebra, que sejam afixadas em local visível para serem lembradas e haja entendimento de que o desrespeito implicará em consequências. Inconscientemente, pais repreendem filhos com ações que não têm nenhuma relação com a quebra de regras, como por exemplo: “Se você não comer, não poderá ver seu programa favorito ou ir brincar com o seu amigo“. É uma atitude incoerente, arbitrária, que gera na criança uma emoção negativa. Por isso, a consequência da quebra de uma regra deve ter ligação com o tema em questão.
Férias
Crianças são sensíveis e aceitam com mais facilidade quando os adultos lhes dedicam tempo, respondem às suas indagações. Converse sobre as opções de férias mais convenientes - curtir a casa ou o jardim, viajar, implementar uma ideia, dar uma geral nos armários e doar o excedente - e exponha o orçamento, o custo-benefício, se elas já tiverem capacidade de compreensão. Períodos de férias são boas oportunidades para impulsionar a flexibilização, saindo da rotina, e a valorização de propósitos coletivos.
Decoração de ambiente Quando a modificação do mobiliário, de acessórios decorativos e preparativos para festas abrange todos os moradores da casa, a criança deve ser envolvida no processo decisório. Sendo o método de trabalho “faça você mesmo“, quando não se conta com a ajuda de especialistas, reserve uma atividade para a criança. Aqui, elas adquirem uma noção maior sobre os costumes, elementos da cultura, aproveitamento de espaço, iluminação, harmonia de cores, otimização da acústica, enfim. Ela deve sentir-se integrando o ambiente do qual faz parte e, da mesma forma, percebendo as necessidades de todos os integrantes.
Liderança de grupo
Se sua criança tiver perfil de liderança, incentive-a a ser representante do grêmio recreativo ou da turma da escola que frequenta. Não sendo o caso, encoraje-a a se posicionar e a exercitar a vigilância, ficando de olho nas decisões e cobrando transparência de quem ocupa a posição. Além de sentir-se responsável, as ações permitirão que ela desenvolva sua comunicação, motive a equipe a conquistar melhores resultados e reafirme valores como confiança e honestidade.
Referência:
ÖHLSCHLÄGER, Annelie. Aus der Schulpraxis: Probieren geht über Studieren. Fachzeitschrift “Welt des Kindes“, 4/97. Freiburg, Alemanha: Lambertus Verlag, 1997.
EBBERT, Dr. Birgit. LERNANDO. Wer war eigentlich Janusz Korczak? Disponível em: https://www.lernando.de/magazin/276/Wer-war-eigentlich-Janus-Korczak
FISCHER, Verena. Die Pikler-Pädagogik. KINDERERZIEHUNG PORTAL. Disponível em: https://www.kindererziehung.com/Paedagogik/Alternative-Erziehung/Pikler-Paedagogik.php.
KORTLANDT, Adriana. A construção da imagem da criança. OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, 2012. Disponível em https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/_ed709_a_construcao_da_imagem_da_crianca/
OLIVEIRA, Edgar. Pequenas decisões. Disponível em: https://edgarjoliveira.medium.com/237-pequenas-decis%C3%B5es-83addc0450df
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