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Natal: da celebração do “deus sol” ao “super-homem”

Foto do escritor: edileneflorentinojedileneflorentinoj

Atualizado: 21 de jan. de 2024

O Natal não é apenas uma festa religiosa em que cristãos comemoram o nascimento de Jesus. A data tem dimensão globalizante: é feriado em vários países, está no centro da temporada de férias escolares e do recesso de órgãos públicos, propicia a muitos trabalhadores subsídio de valor igual a um mês de retribuição ou de valor proporcional ao tempo de serviço prestado no ano, além de ser a época que mais movimenta o comércio. Como faz parte da tradição natalina reunir a família, o período é um dos mais disputados para viagens. Nem todos, porém, sabem que a origem da festa está vinculada à fusão de vários cultos.


O solstício de inverno, no Hemisfério Norte, já descrito como “uma vitória simbólica do Sol contra a escuridão“, é a noite mais longa do ano, após a qual os dias voltam a se prolongar. Ele acontece entre 21 e 22 de dezembro, sendo comemorado desde tempos remotos. Em seu livro Persiguiendo el Sol: La historia épica del astro que nos da la vida (Perseguindo o sol: a história épica do astro que nos dá a vida), o historiador Richard Cohen relata que “praticamente todas as culturas têm uma forma de celebrar esse momento” (EL PAÍS). As mais antigas consideravam-no sagrado: egípcios cultuavam o nascimento do deus Horus, filho dos deuses Íris e Osíris; gregos honravam o deus do sol Helios, filho dos titãs Hipérion e Teia; e os romanos comemoravam o deus Sol invencível (em latim, Sol Invictus).

A Saturnália, festa pagã em homenagem a Saturno - o deus romano da agricultura – era comemorada em 17 de dezembro, vindo depois a ser “esticada” até 23 de dezembro. Muita música, banquetes, danças, jogos e brincadeiras faziam parte dos costumes. Nesses dias, em Roma, não se trabalhava. Havia troca de presentes e a esperada inversão de papéis sociais entre mestres e escravos - uma mistura entre natal e carnaval. Vale lembrar que as festas em Roma chamavam-se feriae, de onde se origina a palavra “férias”. No século 4, o imperador Constantino converteu-se ao cristianismo e o tornou a religião oficial de Roma. Convocou também os bispos para o Primeiro Concílio de Niceia, no qual foram definidos dogmas e transformado o festival do Sol Invictus na comemoração ao nascimento de Jesus, ficando estabelecido o dia 25 de dezembro.

Natal e suas tradições

Para as crianças, o Natal é uma narrativa envolvente. Tem como elementos um menino que nasceu na estrebaria - curral onde são abrigados cavalos, jumentos, muares e arreios para montaria - e que cresceu  “em sabedoria, em estatura, e em graça“, como registra o Evangelho (LUCAS, 2:52). Além do protagonista, exalta o valor da família, da amizade, transmite valores como generosidade, humildade e compaixão. Por intermédio do conto, as crianças aprendem sobre o acontecimento e a preservar a tradição.

Entre os costumes para a celebração estão: o presépio (um cenário em miniatura, criado pelo frade Francisco de Assis, na Itália, para contar aos habitantes da cidade de Greccio, em 1223, o nascimento de Jesus); a iluminação feérica, com pisca-piscas e velas; músicas e encenações sobre o tema; o envio de mensagens para transmitir votos de felicidade; a árvore enfeitada, simbolizando a vida (adotou-se o pinheiro por sua forma esguia e folha perene, que se mantém verde durante todo o ano); a ceia em família, com pratos típicos, na noite que antecede a data; e a troca de presentes. Outros elementos fazem ainda parte da comemoração mundo afora, reforçando o ambiente festivo, que principalmente as crianças valorizam, quando são envolvidas.

Muitos pais alimentam nos filhos a crença de que os presentes seriam trazidos, na madrugada de Natal, pelo Jesus menino ou por um bom velhinho (no Brasil, conhecido como Papai Noel), de barba branca e comprida, gorro e capa vermelha, vindo do Polo Norte, num trenó puxado por renas. Ele passaria de casa em casa (ou desceria pela chaminé), carregando um saco cheio de prendas. Conta a tradição cristã que a figura mística foi inspirada em Nicolau de Bari, bispo da cidade de Mira, que viveu durante o século IV na Ásia Menor (região que hoje corresponde à Turquia). Nicolau teria auxiliado uma jovem a não ser vendida pelo pai, jogando um saco cheio de moedas de ouro que poderiam pagar o dote de casamento da menina.

Em 6 de dezembro comemora-se o seu dia e, no continente europeu, crianças colocam sapatos ou penduram meias, do lado de fora da casa, para que ele passe e os encha com chocolate, amendoim, biscoitinhos e  tangerinas.


Outra versão é de que o presenteador, também conhecido como “Santa Claus”, o Noel brasileiro, seria um personagem lendário criado pela Coca-Cola. Mas essa narrativa veio a ser refutada, sob o argumento de que a Coca-Cola teria feito algumas adaptações da figura para uma peça publicitária, em 1931, sendo que os elementos essenciais, como a barba, o gorro e a capa vermelha já existiriam antes.    


Significado versus consumismo Além do significado primitivo, o Natal carrega muitas memórias, mas, com o passar dos anos, a festa ganhou caráter consumista. Apesar disso, há quem descubra e viva o seu verdadeiro sentido. Lembro-me de um grupo de crianças que, sem apelo ou persuasão, interessou-se por essa narrativa mais do que por qualquer outra. Há vários anos acompanho os pequenos, no jardim de infância, na pausa após o almoço. Houve um período, numa instituição municipal, em que meu grupo era formado por uma clientela bem diversificada – filhos de muçulmanos, cristãos, judeus, hindus e ateus confessos.


Não é segredo que crianças não se aquietam ou adormecem apenas porque estão cansadas. Ao iniciar as fases do sono, o cérebro deixa de absorver estímulos externos e pode, sem ser perturbado, continuar ativo realizando tarefas como a seleção de impressões recebidas e classificação de conteúdo. Esse é um momento que pais e educadores devem aproveitar, principalmente quando possuem um repertório de ajuda que, dependendo da situação, pode ser usado de maneira flexível e individual.


Ao dar-me conta disso, passei a colecionar cds com canções de ninar em diferentes idiomas, livros de contos e mitologias, luminárias, instrumentos de massagem, bichos de pelúcia, fontes de água (cascatas), difusores de aroma (estes devem ser usados com a autorização dos pais, pois aroma pode provocar alergia), pedras naturais, enfim objetos que auxiliam na redução da ansiedade e proporcionam um estado de relaxamento. Alguns elementos ficavam na altura dos olhos das crianças, para que elas pudessem desenvolver a autonomia; outros, de valor inestimável, permaneciam numa prateleira superior.

Criamos o nosso ritual: a cada dia uma criança poderia escolher um conto ou determinada peça, como tema. Havendo consenso, podia-se também optar por um livro e, a cada dia, ser lido um novo capítulo. Dessa forma, mantinha-se o suspense e a motivação para o nosso encontro do dia seguinte. Diferentemente do que pensei, as crianças interessaram-se exclusivamente pelas ilustrações de uma bíblia infantil (publicada pela Sociedade Bíblica Alemã, com gravuras do holandês Kees de Kort). E, todos os dias, “a criança da vez“ retirava a obra da prateleira, pedindo a leitura de quase o mesmo capítulo. Eu tentava introduzir algo novo, mas elas acenavam que não, com a cabeça, e soavam em coro: “Jesu und seine Jünger“ (Jesus e seus discípulos). Enquanto lia a história, algumas adormeciam, porém a maioria continuava atenta, fazendo perguntas sobre genealogia, geografia e indumentária dos personagens. Certo dia, não desejando mais repetir as mesmas histórias, camuflei o livro na prateleira de cima, o que gerou um rebuliço. Fizemos um trato: a leitura das histórias bíblicas ficariam para a ocasião do Advento e o período da Páscoa. Do contrário – imaginava -, não iríamos longe. Eu queria que as crianças explorassem o material disponibilizado e adquirissem uma bagagem a ser levada pela vida. Embora eu seja cristã, percebi, depois, que estava equivocada, pois, como educadora, deveria fomentar o interesse delas, orientá-las a pensar e não o que pensar, como diria a antropóloga Margareth Mead.


Havia no grupo uma menina, de ascendência judaica, para quem as cidades bíblicas soavam familiares. Ela ouvia compenetrada. Também um menino que adorava o deus hindu Ganesha e tentava fazer uma ligação entre os avatares. O mais entusiasmado era o filho de um casal de professores de famoso ginásio da Região, os quais educavam os filhos sem possuir televisão em casa. Ele era um “devorador“ de livros e, com três anos de idade, já conhecia vários personagens mitológicos.


O “super-homem” da Filosofia


Entre as histórias mais pedidas estavam: “O menino Jesus no Templo”; “As Bodas de Caná”; “Jesus cura um paralítico”; “Jesus acalma a tempestade”; “A cura do cego Bartimeu”; e os capítulos que contam como Jesus ressuscitou pessoas e a si mesmo. Esses capítulos expõem superpoderes de Jesus e, por isso – penso - fascinavam os pequenos.

Alguns nunca tinham ouvido a respeito de Jesus, nem o viam como um homem, e sim como uma Potência, a quem admiravam pela ousadia, coragem, bondade. Comparavam-no ao Superman pelos feitos inacreditáveis. Convenientemente, o conceito de super-homem – o primeiro super-herói das histórias em quadrinhos - foi inspirado na definição filosófica de “Übermensch” (o além-homem ou o sobre-humano), do escritor alemão Friedrich Nietzsche, como aquele que supera a natureza humana e afirma a vida em todos os aspectos. Nietzsche apontava três metamorfoses pelas quais deve passar o espírito para sua  superação: na sua primeira forma, como o camelo: servil, reverente, submisso. No deserto mais remoto, ocorreria a segunda transformação: agora, em leão; “o espírito fortalecido de tanto carregar pesos renasceria como um guerreiro”. E, por fim, se transformaria numa criança, porque a criança é um novo começo. Ela seria capaz de criar novos valores, pois como o Sol, “quer criar um mundo que gire em sua volta”.(MEDIUM, 2023)

 

Aquele meu grupo se desfez, as crianças foram para a escola e eu mudei de emprego, indo trabalhar com outra faixa etária. Francamente: recordo-me delas como um sol invencível, cuja teimosia e curiosidade ainda enchem a minha lembrança de bons sentimentos, que afloram em todos os Natais.

 

Referência: ALTARES, Guillermo. A origem do Natal: uma luta entre elementos religiosos e pagãos. EL PAIS, Cultura, 19.12.2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/08/cultura/1512736033_713696.html . Acesso em 14 de dez. de 2023.

PAGANISMO E CRISTIANISMO NAS NOITES DE NATAL. Instituto Ciência Hoje. Coluna Literária, dezembro.2021.  Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/paganismo-e-cristianismo-nas-noites-de-natal/. Acesso em 15 de dez. de 2023. CORDEIRO, Tiago: Jesus Cristo, o excêntrico messias dos evangelhos apócrifos. UOL, 12.12.2019, atualizado em 12/01/2023. Aventuras na História. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-jesus-dos-evangelhos-apocrifos.phtml. Acesso em: 15 de dez. de 2023. SEIMOHA, Karine. Mitologia Superman: a força por trás do símbolo. iG São Paulo,  27/10/2017. Disponível em https://gente.ig.com.br/cultura/2017-10-27/superman-mitologia-simbolo.html. Acesso em: 13 de dez. de 2023. GONÇALVES, Nathan. Nietzsche e as três metamorfoses do espírito. Medium, 02.05.2018. Disponível em: https://medium.com/pirata-cultural/nietzsche-e-as-três-metamorfoses-do-espírito-24b4ae847cdd. Acesso em 15 de dez. de 2023.

 
 
 

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Edilene Florentino Jäger

Jornalista e educadora, com especialização no desenvolvimento infantil de zero a três anos de idade. Desde 2006 integrando equipes pedagógicas de instituições de educação infantil, na Alemanha.

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