A regulamentação do ensino domiciliar continua dividindo opiniões. Vez ou outra surgem novos casos, aquecendo o debate público e fazendo emergir o sonho de muitas famílias, de que a educação de seus membros sejam pautadas em conformidade com suas compreensões morais, filosóficas e religiosas. Logo, mergulham um por um no silêncio, como se já, na antessala, a pauta sofresse obstrução.
Popularizado no termo inglês homeschooling e permitido em muitos países, o ensino domiciliar é a alternativa que esses pais buscam para oferecer aos filhos um ensino personalizado, respeitando o ritmo e necessidade deles e explorando os talentos individuais, em especial dos portadores de deficiências e de transtornos de desenvolvimento. Assim, esperam também restituir a motivação para o aprendizado, conquanto estudantes alegam participar de aulas “improdutivas“, “de caráter repetitivo e tedioso“, nas escolas que frequentam.
Além disso, as famílias tentam resguardá-los do bullying escolar (intimidação sistemática e atos de agressão contra aquele que não é aceito por um grupo), e livrá-los da cooptação por parte de professores militantes, em sala de aula. Uma das maiores críticas é direcionada à ideologia de gênero, que impõe uma linguagem neutra a meninos e meninas. Os tutores acusam a proposta de servir à doutrinação, violando valores familiares. No âmago da discussão, até surgiu em São Paulo um movimento - o “Escola sem Partido“ - como reação a um suposto fenômeno de instrumentalização do ensino para fins político-ideológicos, partidários e eleitorais, o que na opinião de seus proponentes cerceia a liberdade do estudante.
A farsa da doutrinação ideológica
De outra parte, é defendido o argumento de que não se trata de doutrinação ideológica, pois os alunos se encontrariam em situação tão vulnerável quanto os professores, vivendo uma revolução pedagógica exposta em publicações de organismos internacionais como a Unesco, a OCDE, o Conselho Europeu e a Comissão de Bruxelas.
Apoiado em textos oficiais desses organismos, o escritor francês Pascal Bernardin revela em sua obra “Maquiavel Pedagogo“ o objetivo em questão: várias reformas no ensino ocorreram de tempo em tempo e a primeira delas teria se ocupado da formação de professores. Os cursos de magistério, que até pouco tempo habilitava estudantes de nível médio a lecionar (na educação infantil e nos primeiros anos do ensino fundamental), teriam sido substituídos por formações acadêmicas e estas estariam se empenhando em ensinar técnicas de manipulação psicológica aos futuros profissionais.
Segundo Bernardin, “dentre os traços mais relevantes dessa revolução pedagógica é preciso destacar os seguintes: testes psicológicos, projetados ou já realizados, em grande escala; informatização mundial das questões de ensino e, particularmente, o censo de toda a população escolar e universitária, a pretexto de ‘aperfeiçoamento do ensino‘(...); asfixia ou subordinação do ensino livre e pretensão a anular a influência da família“. O ensino acadêmico passou a preparar os professores para a sua nova missão, que já não seria a formação intelectual, mas o ensino “não cognitivo“ e a “aprendizagem da vida social“.
A série de experiências sobre obediência, isto é, punição como método de aprendizagem, realizada pelo psicólogo Stanley Milgram, em 1961, na Universidade de Yale (EUA), é um dos exemplos que o autor cita para sustentar sua explanação. Participaram do experimento, voluntariamente, 40 homens entre 20 e 50 anos de idade, que formavam duplas como “aluno” e “professor”. O aluno era sempre um cientista da pesquisa, enquanto que o professor era um voluntário. O “professor“ fazia várias perguntas e caso o “aluno“ não acertasse as respostas, ele aplicava choques que começavam em 15 volts e iam progressivamente até 450 volts. Conforme recebia o choque, o aluno reagia gritando, pedindo para sair do experimento ou ficando em silêncio. Os professores, entretanto, eram orientados a seguir com a pesquisa, ignorando o efeito da sua autoridade sobre seu semelhante. Entre “professor“ e “aluno“ havia uma barreira física – ambos não se viam - e só no final do teste a simulação do “aluno“ era revelada.
Da amostra de Milgram, 65% dos “professores“ foram capazes de ir até o fim do experimento, disparando choques de 450 volts que, se fossem verdadeiros, teriam matado os “alunos“. Todos os participantes prosseguiram até o limite dos 300 volts. O experimento foi repetido em outros países, também com mulheres, e a média desconcertante de 65% se manteve.
O depoimento de Adolf Eichmann, um dos oficiais do exército da Alemanha nazista durante o Holocausto, que justificou seus atos desumanos contra judeus e outros grupos por estar seguindo ordens, teria sido a principal inspiração de Milgram para a pesquisa. Em 2015, a história foi retratada pelo cinema americano, no filme “O Experimento de Milgram“, que pode ser assistido pelo Youtube, com legendas em português.
“A Experiência“ de Zimbardo
Envolvendo questões éticas, que geram comparações com a experiência de Milgram, está "Das Experiment“ (2001), filme alemão dirigido por Oliver Hirschbiegel. O longa-metragem é baseado na investigação de um grupo de pesquisadores da Universidade de Stanford (EUA), em 1971, sob a liderança do professor Philip Zimbardo, que se propôs a investigar o comportamento humano em uma sociedade na qual os indivíduos são definidos pelo grupo.
O estudo foi patrocinado pela Marinha americana para explicar os conflitos no sistema prisional da Corporação. Zimbardo se dispôs a testar a hipótese de que o indivíduo em um grupo coeso tende a perder “a identidade pessoal, consciência e senso de responsabilidade, alimentando o surgimento de impulsos anti-sociais“, como formulou o francês Gustave Le Bon em sua “teoria da desindividualização“.
Voluntários foram arregimentados, com prêmios em dinheiro, para participar da experiência em dois grupos: um, como “prisioneiros“ e outro, como “guardas“. Para tal foi simulada uma prisão, reproduzindo o ambiente de uma original, no porão do Instituto de Psicologia da Universidade. Uma série de condições foram criadas para que os participantes ficassem desorientados e fôssem despersonalizados, além de táticas utilizadas com efeito nas prisões americanas.
No local, determinadas regras deveriam ser obedecidas e os “guardas“ poderiam recorrer a qualquer meio julgado necessário para mantê-las, sem usar a violência física. No início, houve cordialidade, mas, à medida que o experimento prosseguia, os “guardas“ adotaram posturas abusivas, o que levou os “prisioneiros“ a apresentar severos distúrbios emocionais. Os investigadores chegaram a afirmar que aproximadamente um terço dos guardas apresentaram tendências sádicas "genuínas". O experimento ficou fora de controle e, quando Zimbardo resolveu abortá-lo, apenas uma pesquisadora, entre cerca de 50 pessoas que visitaram a “prisão“, questionou a ética do estudo, que havia sido planejado para durar duas semanas e durou apenas seis dias.
Além do filme alemão, que também pode ser assistido no Youtube com legendas em português, mais dois filmes sobre o tema foram lançados, posteriormente, nos Estados Unidos. O segundo é uma refilmagem e chama-se Detenção (“The Experiment“), dirigido por Paul T. Scheuring, de 2010; e o terceiro, “The Stanford Prison Experiment“, com direção de Kyle Patrick Alvarez, de 2015.
O caso Elisa Flemer
O debate sobre o homeschooling foi resgatado em abril de 2021 por uma jovem estudante de 17 anos, da cidade de Sorocaba, São Paulo. Elisa Flemer deixou de frequentar a escola em 2018 para seguir uma rotina própria de estudos, ao perceber que não se integrava ao sistema. Ela foi aprovada, em 2021, em mais de um curso de engenharia e conquistou o 5º lugar na lista de aprovados em Engenharia Civil da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo - USP. Por não ter o diploma de ensino médio, seus pais deram entrada, com ajuda do Ministério Público em um pedido de liminar para que ela pudesse ser matriculada no ensino superior. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou o pedido, afirmando que o método de ensino não estaria previsto na legislação.
Em 2018, os pais de uma menina de 11 anos, do município de Canela, Rio Grande do Sul, solicitaram à Secretaria Municipal de Educação autorização para que a filha estudasse em casa e também tiveram seu pedido negado. Eles impetraram mandado de segurança perante a Justiça local. Após sentença, houve recurso ao Tribunal de Justiça Regional e ao Supremo Tribunal Federal –STF -, que julgou o requerimento improcedente por falta de norma legal que regulamente a prática do ensino domiciliar. Com isso, o conteúdo da decisão passou a valer como súmula (paradigma jurídico) para os demais casos semelhantes.
Falta norma legal para regulamentar a prática
Polêmico, o debate em torno do homeschooling “envolve discussões jurídicas como garantia da liberdade individual e da autonomia familiar, dever do Estado na educação, além de debate pedagógico sobre a eficácia da modalidade“, lembra Fernando Romani Sales, em seu artigo “Ensino domiciliar enquanto bandeira política do conservadorismo na educação“. Um número considerável de juristas defende que a Constituição Federal, assim como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), garante o direito à educação e o define como um dever do Estado e da família. Também o Código Civil asseguraria aos pais essa responsabilidade. No entanto, o Código Penal criminaliza os pais que não matriculam seus filhos nos estabelecimentos de ensino.
Em reportagem publicada na Gazeta do Povo, André Borges Uliano avalia que diante da manifestação do STF, há segurança jurídica suficiente para o tratamento legal da matéria. Inclusive, dado que a prática do ensino domiciliar envolve o ensino infantil, fundamental e médio, inclusive, essa legislação não precisaria necessariamente ser federal. Como o art. 211 da Constituição determina que os entes federativos devem atuar em regime de colaboração, e segundo o art. 24, IX, c/c art. 30, I e II, compete a todos eles legislar sobre 'educação' e 'ensino', seria possível a quaisquer deles regulamentar a educação domiciliar dentro de seu âmbito“. Na prática, porém, valem outras interpretações. Alegando seguir o entendimento do STF , recentemente o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) declarou inconstitucional, por unanimidade de votos, a Lei Estadual 20.739/2021, que regulamentou o homeschooling no estado. Desde abril de 2019, tramita no Congresso o projeto de Lei – PL 2401/2019, de autoria do Poder Executivo, que dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar. Nele, a responsabilidade da escola é transferida para os pais, que podem assumir o papel de ensinar ou contratar tutores.
Contrários a essa iniciativa estão os que veem no modelo de ensino causas que prejudicariam os estudantes, como a possível falta de estrutura na família, a falta de socialização, a visão limitada de assuntos, já que faltaria a contraposição de ideias e abordagem de temas para o respeito à diversidade, e o risco do aumento da violência doméstica e do abuso sexual de menores, os quais estudando em casa estariam mais suscetíveis a esses tipos de crimes.
O que muda com o homeschooling
Não existe um modelo único de homeschooling, nem o ensino, a partir desse entendimento, fica restrito à própria casa do aluno. De acordo com a proposta do governo, estudantes da educação escolar teriam os mesmos direitos daqueles que optarem pela educação domiciliar. Também estaria garantida sua participação em concursos, competições, avaliações nacionais instituídas pelo Ministério da Educação, avaliações internacionais, eventos pedagógicos, esportivos e culturais, incluídos aqueles em que for exigida a comprovação de matrícula na educação escolar como requisito. Cursos complementares poderiam ainda ser usados como ferramentas para a aprendizagem.
“Os pais ou os responsáveis legais que optarem pela educação domiciliar manterão registro periódico das atividades pedagógicas do estudante“, enuncia o texto. Com isso, os pais que optarem pelo homeschooling deverão formalizar a opção através de uma plataforma virtual e apresentar um plano pedagógico individual referente ao ano letivo. Caberia ao Ministério da Educação fazer a supervisão da educação domiciliar, submetendo o aluno, para fins de certificação da aprendizagem, a uma avaliação anual.
Havendo boa vontade do Congresso Nacional em pautar a votação do PL 2401/2019, os pais que cogitam a possibilidade e são tratados como “foras da lei”, sendo ameaçados por agentes do Estado de responderem criminalmente ou perderem a guarda dos filhos, estarão próximos de ver a proposta legalmente reconhecida. De acordo com o site “Poder 360“, essa é a iniciativa mais acompanhada na área da “educação, cultura e esportes” do site da Câmara dos Deputados, nesta legislatura.
Atualmente existem cerca de 7.500 famílias que praticam o homeschooling, alcançando 15.000 estudantes, de 4 a 17 anos, segundo estimativa da Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar). A Comissão de Constituição e Justiça – CCJ – da Câmara Federal aprovou, em 10 de maio de 2022, projeto que permite homeschooling. O texto ainda depende de análise pelo Plenário. Defensores do projeto devem acompanhar a tramitação e cobrar a votação dos seus representantes.
Referência: DE CARVALHO, João Deusdete. As instituições educativas como aparelhos ideológicos do Estado. PORTAL JUS, 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49739/as-instituicoes-educativas-como-aparelhos-ideologicos-do-estado
Rádio Jovem Pan. Jovem que adotou o homeschooling e foi barrada na USP fala a Os Pingos nos Is. PROGRAMA OS PINGOS NOS IS, 2021. Disponível em: https://youtu.be/Q35vGYppJPE
BARROS, Lorena. Após decisão judicial, adolescente que adotou ‘homeschooling’ é impedida de se matricular na USP. JOVEM PAN NEWS, 2021. Disponível em: https://jovempan.com.br/noticias/brasil/apos-decisao-judicial-adolescente-que-adotou-homeschooling-e-impedida-de-se-matricular-na-usp.html
O Experimento de Milgram, Estados Unidos, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ARBptHAPA9E
Das Experiment, Alemanha, 2001. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I9GI7ojUn7A
SALES, Fernando Romani. Ensino domicilar enquanto bandeira política do conservadorismo na educação. NEXO POLÍTICAS PÚBLICAS, 2021. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2021/Ensino-domiciliar-enquanto-bandeira-pol%C3%ADtica-do-conservadorismo-na-educa%C3%A7%C3%A3o
REVISTA OESTE. Lei do Homeschooling é inconstitucional, decide TJ-PR. Disponível em: https://revistaoeste.com/brasil/lei-do-homeschooling-e-inconstitucional-decide-tj-pr/
ULIANO, André Borges. Em decisão histórica, voto condutor no STF reconhece a constitucionalidade do ensino domiciliar (homeschooling). GAZETA DO POVO. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/instituto-politeia/stf-constitucionalidade-ensino-domiciliar-homeschooling/
R7.COM. Entenda o homeschooling, projeto que pode ser aprovado neste ano. R7, 2019. Disponível em: https://noticias.r7.com/educacao/entenda-o-homeschooling-projeto-que-pode-ser-aprovado-neste-ano-16092019?amp.
ALVES, Letícia. Projeto de homeschooling é o mais acompanhado no site da Câmara sobre educação. PODER 360, 2020. Disponível em: https://www.poder360.com.br/congresso/projeto-de-educacao-domiciliar-esta-entre-os-mais-acompanhados-no-site-da-camara/
LOPES, Daniel. A jogada de mestre contra o dragão. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UT9q7mv4ETg
LOPES, Daniel. A grande chance. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4Fqg07QBA2Q
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