Tim entra na sala aos prantos. Ele brincava com outras crianças no átrio, quando teve essa reação inesperada. Ficamos preocupados com o que poderia ter acontecido. Com dificuldade, ele conta que Chase havia desaparecido. Meu colega e eu não sabíamos quem era Chase. Imaginamos que fôsse um bichinho de pelúcia, ou um desses carrinhos de brinquedo incrementados, e dissemos que, juntos, logo o encontraríamos. Tim nos desanima, alegando estar sentido a falta de Chase desde o dia anterior, quando comecou a procurar por ele.
O colega Julian imagina que Chase poderia ter sido raptado. Para Maya, alguém o teria escondido. Outras crianças censuram Tim pelo drama, o que aumenta sua crise de choro e irritabilidade. Levamos um bom tempo para confortá-lo. Ficamos sabendo depois que Chase era uma miniatura de plástico, de aproximadamente três centimetros, de um dos personagens do filme “Patrulha Canina“ (Paw Patrol, nome original em inglês).
A série de animação infantil estreou nos Estados Unidos e no Canadá, em 2013, apresentando seis cãezinhos heróicos - um dálmata (Marshall), um pastor alemão (Chase), um filhote mestiço de terrier escocês e schnauzer (Rocky), um bulldog inglês (Rubble), uma cockapoo (Skye) e um labrador de cor escura (Zuma) - liderados por um menino amante de tecnologia chamado Ryder, numa cidadezinha de nome Baía da Aventura. Outros personagens secundários fazem parte do elenco, e a série ganhou peso nas temporadas seguintes.
No Brasil, “A Patrulha Canina“ foi exibida pela primeira vez em 2015, pela TV Cultura, vindo anos depois a ser transmitida pelo SBT. Atualmente, todas as temporadas podem ser assistidas em canais fechados.
Cães tornaram-se símbolo de lealdade
São várias as expressões usadas para descrever a relação afetiva entre o homem e o cachorro, nenhuma porém está mais presente no imaginário coletivo do que a frase “o cão é o melhor amigo do homem“. Pouca gente conhece a origem desse quase provérbio. Um fazendeiro da cidade de Warrensburg, no estado americano do Missouri, teve seu melhor cão de caça, Old Drum (Velho Tambor), morto por ordem de um vizinho, que desconfiava que o animal andava matando suas ovelhas. O dono do cachorro resolveu entrar com um processo, pedindo uma indenização de 50 dólares. O júri lhe concedeu a metade do valor, mas o vizinho apelou da sentença.
O dono conseguiu um novo julgamento, em setembro de 1870, e contratou dois advogados. Um deles, George Graham Vest, arrancou lágrimas dos jurados, arguindo: “o único amigo desinteressado que um homem pode ter neste mundo egoísta - aquele que nunca é ingrato ou traiçoeiro - é seu cão, que permanece com seu dono na prosperidade e na pobreza, na saúde e na doença e que dormiria no chão frio, onde os ventos invernais sopram e a neve se lança impetuosamente, se apenas o deixarem estar ao lado de seu dono.(...)“
Passados nove anos, Georg Vest tornou-se senador e, 88 anos depois, a cidade de Warrensburg homenageou Old Drum com uma estátua de bronze. No ano 2000, ou seja, 130 anos mais tarde, a história do julgamento serviu de base para um filme - The Trial of Old Drum (Meu Amigo Drum). Sobre o prejuízo causado ao criador de ovelhas, não se tem notícias.
O caso pode ter inspirado o jurista e advogado Sobral Pinto, em sua luta pelos direitos humanos, notabilizando-se por embates contra a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e contra o regime militar (1964-1985). Embora não fosse adepto do comunismo (pelo menos não publicamente), Sobral Pinto foi defensor de Luiz Carlos Prestes e de Harry Berger perante o Tribunal de Segurança Nacional, em 1937. E, no caso Berger, que teria sido severamente torturado, exigiu do governo a aplicação do artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais, numa petição, estudada até hoje em cursos de Direito, em favor de tratamento humanitário para prisioneiros.
Para que um cachorro?
Se fôssemos listar as razões que levam pessoas a adotar ou comprar um cão para si ou para um ente querido, certamente constaria: ter uma companhia constante; ter uma alternativa de segurança, tirar esse animal de situação de risco ; ter um companheiro para caçar; suprir uma necessidade de socialização, pois passear com os cães propicia diálogos e encontros com outros donos de cães; evitar uma vida sedentária, já que cães são animais ativos e precisam de atividades físicas, portanto seus donos precisam se movimentar; ensinar crianças a ser mais afetivas e solidárias; ter um bom motivo para voltar todos os dias para casa. E, a mais recente: estar em evidência, pois o cachorro deixou de ser apenas um animal de estimação para ser um símbolo de ostentação.
Tornou-se comum compartilhar imagens de cães, assim como contar com a sua companhia em eventos. São poucos os locais, atualmente, em que os cães não têm acesso e há uma campanha constante para que eles ocupem cada vez mais espaço. Os cães, por sua vez, passaram a incorporar o encanto, a riqueza, portando artigos de grife, ganhando festas de aniversário e recebendo até presentes luxuosos, conforme é mostrado nas redes sociais. Uma gama de animais têm o seu próprio perfil e milhões de seguidores nas redes.
Num passado próximo, a circulação dos cães era restrita ao lado externo das casas. Pelo menos, em países quentes como o Brasil. Com o tempo, eles conquistaram seu próprio espaço dentro das moradias, nos meios de transporte e em hospedarias – uma qualidade de vida, diga-se, superior à que desfrutam milhões de seres humanos.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE - existem mais cachorros do que crianças nas casas de todo o país (o equivalente a mais de 52,2 milhões, em 2015) e talvez essa seja a explicação para o amplo mercado de produtos voltados aos bichos. Não surpreende que a família “Mars“ (fabricante das barras de chocolate Mars, Snickers, m&m‘s e outros), uma das mais ricas do mundo, seja também detentora de marcas de ração animal como “Pedigree“ e “Whiskas“.
Essa inversão ocorre despercebida da maioria da população, que tende a aceitá-la com normalidade. No âmbito jurídico, em contrapartida, perspectivas referentes à relação entre homens e cães foram analisadas pelos especialistas em Direito Público Aury Lopes Jr. e Philipe Benoni Melo e Silva, em artigo (“A adoção da metáfora dos cães de Pavlov no campo do Direito Penal“) publicado no portal “Consultor Jurídico“.
Logo no início do texto, eles comentam o filme White God (Deus Branco, Hungria, 2014), longa-metragem dirigido pelo cineasta Kórnel Mundruczó, no qual “se desenvolve a discussão a respeito da opressão e da tensa relação entre poder e submissão, que, dentre outras, se perpassa na relação entre os homens e os cães“. A sinopse do filme o descreve como “um conto premonitório sobre as relações entre uma espécie superior e o seu inferior (...)“. Contudo, o roteiro se baseia em elementos reais e aborda subliminarmente a relação entre pais e filhos, o comportamento de vizinhos no continente europeu, que vivem sob medidas governamentais disciplinares para a criação de animais, e as dores da adolescência. Quem assiste à obra é também levado a questionar a fraqueza de instrumentos utilizados pelo Estado para cumprir o papel de garantir a segurança dos cidadãos.
Na sequência, os advogados discorrem sobre o experimento de Pavlov, perguntando-se se o Direito Penal estaria sendo palco de ensaio semelhante e que tipo de estímulo ou recompensa estaria sendo oferecido aos atores processuais para gerar os comportamentos que temos observado.
“Pavlov fez uma das grandes descobertas da atualidade: o reflexo condicionado. Trata-se de um processo que descreve a origem e a transformação de comportamentos com base no binômio estímulo vs. resposta sobre o sistema nervoso central dos seres vivos“, ressaltam. “Seguindo os mesmos estudos, John Watson realizou pesquisas em que comprovou que é possível ‘aprender‘ a sentir emoções (por exemplo, sente-se medo quando se escuta o motor do aparelho do dentista). A psicologia explica que emoções e comportamentos podem ser aprendidos e moldados, despidos de senso crítico, de acordo com o estímulo que recebem.“
A experiência de Pavlov
Ivan Petrovich Pavlov (1849 - 1936) foi um fisiologista russo, que ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina, no ano de 1904, em reconhecimento ao seu estudo sobre os processos digestivos dos animais, com o qual fundamentou a teoria do condicionamento clássico.
Um dos experimentos que basearam sua descoberta assim procede: um cão é amarrado a uma mesa do laboratório. A reação natural de um cão ao ver carne é a salivação. Assim, é apresentado ao animal um estímulo neutro - uma assistente toca um sino e entra na sala para alimentá-lo. O cão não saliva.
Em seguida, o sino é tocado repetidas vezes e, então, oferece-se uma carne para o animal. O sino vira “sinal“ para a comida.
Depois de determinado tempo, apresenta-se apenas o som da sineta e o cão saliva como se estivesse recebendo a carne. O sino passa a ser um estímulo condicionado, ao qual se seguia uma reação condicionada.
O que se conclui
Não só cães tendem a imitar o ser humano, como o ser humano em muitas situações expõe um comportamento semelhante ao dos cães. Vivemos sob várias formas de condicionamento - um trabalho para o qual se apela a personalidades, que atuam como formadoras de opinião - mais recentemente rotuladas de “influenciadoras“. No Brasil, o programa da Xuxa deu a largada para uma visão mais humanizada do cachorro.
A apresentadora exibia regularmente o seu exemplar Yorkshire e sua relação com o pet, persuadindo o público infantil. Uma enxurrada de propagandas com cães e sobre os vínculos emocionais criados com o animal vieram na sequência. O cachorro, que antes era um símbolo de proteção da família, passou a ser tratado como um bebê indefeso pelos novos tutores, que são extremamente protetores e têm inclinação a infantilizar as raças menores.
Não é minha intenção, aqui, desprezar os benefícios terapêuticos que a companhia de um animal de estimação pode trazer, principalmente aos deficientes visuais, apenas penso que a sociedade deveria estar mais atenta e buscar identificar interesses que estão por trás desses excessos.
Outro fator inquietante é o comércio ilegal de animais, que é a terceira maior atividade ilegal do mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e de armas. Avaliado como altamente lucrativo, o tráfico de animais pode levar a más condições de reprodução ou que filhotes de cães e gatos sejam separados das progenitoras muito cedo e submetidos a longas viagens, sob condições estressantes. Representa também um risco para a saúde e ordem pública, pois os animais criados ilegalmente muitas vezes não estão vacinados, têm documentos de identidade falsificados e podem transmitir doenças infecciosas.
De tempo em tempo, a situação ganha novos destaques. A novidade é que, em decorrência da invasão da Ucrânia, o ingresso em território nacional de cães e gatos de refugiados e brasileiros repatriados daquele país foi facilitado pelo governo do Brasil. A medida de solidariedade libera a apresentação do Certificado Veterinário Internacional (CVI), emitido ou endossado pelas autoridades veterinárias dos países de origem dos animais, de um atestado de vacinação ou qualquer outra certificação sanitária no momento do ingresso no Brasil. Além do mais, cães e gatos de refugiados ou de repatriados que fazem escala no Brasil passam a ter passagem livre pelo país.
Criança precisa de criança
Independentemente da procedência, animais não estão isentos de problemas de comportamento. Há pouco tempo, na região onde resido, um cachorro labrador mordeu o rosto da sua dona, enquanto ela dormia. O caso foi tão grave que ela não podia falar e teve que alarmar uma vizinha para chamar o serviço de emergência. Para quem tem o costume de levar o cachorro para a cama, fica o alerta. O caso trouxe à discussão um estudo no qual foi revelado, no final de 2017, que um terço da população alemã dormia mal. “Seria talvez o cachorro uma possibilidade de mudar essa situação?“, perguntou Sven Kunkel, no site da “Martin Rütter Dogs Hundschule“, sua reconhecida escola de adestramento de cães. Sven foi taxativo: um adulto pode fazer a sua opção, mas “um cachorro não deveria passar a noite na cama de uma criança. Crianças e cachorros não deveriam nunca deixar de estar sob controle“.
Em um dos seus vídeos no Youtube, o adestrador Jairo Teixeira, da “Bandog Brasil“, compartilha seu conhecimento de mais de 40 anos na área: “As pessoas levam a sério essa história de o cão ser o melhor amigo do homem e tentam construir suas relações baseadas nesse princípio. Ou seja, se eu tratar bem o meu cãozinho, der bastante carinho, ele vai me obedecer. Obviamente, não funciona dessa forma, o cão não responde à altura, os problemas surgem, as pessoas se decepcionam e desistem da relação. São dois universos completamente diferentes. A primeira característica da amizade é a reciprocidade. Amizade envolve valores morais e cachorro não entende isso, ele age por instinto“. Por mais companheiro que um cão possa ser, jamais substituirá um verdadeiro amigo, pois amizade exige mais do que aquilo que um animal pode oferecer, defendem especialistas. O trabalho da americana Emmy Werner, psicóloga do desenvolvimento, e o resultado de pesquisas sobre pessoas resilientes e crianças em situações de vulnerabilidade, como o “Mannheimer Risikokinderstudie“, realizado em 2000, e o “Bielefelder Invulnerabilitätsstudie“, em 1999, na Alemanha, identificaram fatores de proteção especial, que facilitam crianças e adultos a lidar com situações de vida estressantes:
- ter no mínimo, uma pessoa de referência estável;
- viver sob um clima de apreço;
- manter contato positivo com pessoas do mesmo grupo (peer group).
Resumindo: crianças não precisam, necessariamente, de um animal de estimação e sim de alguém que as oriente e proteja, de uma ambiência agradável para se desenvolver em plenitude e do convívio com outras crianças, com quem fazem amigos. Transmitir às gerações futuras o valor da amizade é de extrema importância, porque "hoje temos uma geração bem estranha: põe os filhos em creches, os pais em asilos e passeiam com os cães“. Essa frase, de um autor que não foi identificado, publicada no site www.pensador.com, é excelente convite à reflexão.
Referência: George Graham Vest. Tributo a um cão. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/George_Graham_Vest População de cachorros supera o número de crianças no Brasil, diz levantamento inédito do IBGE. R7, BRASIL, 2015. Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/populacao-de-cachorros-supera-o-numero-de-criancas-no-brasil-diz-levantamento-inedito-do-ibge-02062015/ FATOS DESCONHECIDOS. Essas famílias governam secretamente o mundo. Apresentação de Ivan Lima. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bjtG2C6Y8Ys/ LOPES JR., Aury; MELO E SILVA, Philipe Benoni. A adoção da metáfora dos cães de Pavlov no campo do Direito Penal. PORTAL CONSULTOR JURÍDICO, 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-set-07/Limite-penal-adocao-metafora-caes-pavlov-campo-direito-penal PIVA, Artur. Cães e gatos de refugiados da Ucrânia têm passe livre no Brasil. REVISTA OESTE, 2022. Disponível em: https://revistaoeste.com/mundo/caes-e-gatos-de-refugiados-da-ucrania-tem-passe-livre-no-brasil/ KUNKEL, Sven. MARTIN HÜTTER DOGS, 2019. Darf mein Hund mit mir im Bett schlafen? Disponível em: https://www.martinruetter.com/schwerin/news/details/artikel/darf-mein-hund-mit-mir-im-bett-schlafen/
TEIXEIRA, Jairo. O cão NÃO É O MELHOR amigo do homem! BANDOG BRASIL–ADESTRAMENTO DE CÃES. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TGDrPNdYvSw/. TEIXEIRA, Jairo. Os cuidados no convívio de CÃES E CRIANÇAS. BANDOG BRASIL–ADESTRAMENTO DE CÃES. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pDdQeHq3Prw&t=288s/ BLANK-MATHIEU, Margarete; GEBHARDT, Waltraud; KOCS, Ursula e outros: Erziehungswissenschaften. Band 1 und 2. Neusäß, Alemanha: Kieser Verlag, 2002.
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